A menor pessoa do mundođź“ŤBuenos Aires e PatagĂ´nia

Eu imaginei que finalmente conseguiria curtir minhas férias livre da ansiedade. Mas a desgraçada também viaja de avião.

alana 🤎
4 min readNov 20, 2023

Vou direto ao ponto: viagens sempre me deram um medo danado. Um medo irracional de sair do meu pequeno mundinho. E ele produzia os pensamentos intrusivos mais absurdos. Tudo virava sinal para não ir. Antes de toda viagem, deixava as coisas preparadas para caso eu morresse (a quem eu quero enganar com esse “caso”?). Fazia todas as despedidas, escrevia recados em post-its, anotava senhas. Eu não era prevenida, era só a ansiedade mesmo.

Acontece que depois de alguns anos de terapia e de iniciar um tratamento adequado, melhorei significativamente. Experimentei a sensação maravilhosa de querer uma viagem, de planejar minhas roupas para cada passeio, de dormir durante o voo e de não chorar a cada turbulência. Senti como é a doce vida de alguém que consegue resolver problemas porque não está hiperventilando. Confesso, eu me senti bem grandinha.

Até semana passada.

Minha arqui-inimiga me encontrou de novo, às vésperas da viagem de férias à Argentina. Ela mostrou que ainda consegue encontrar os lugares certos para me golpear.

Seria a primeira viagem internacional que eu faria sozinha com meu parceiro. Junto com a preocupação natural de algo dar errado com o dinheiro, de não conseguirmos nos comunicar bem em outro idioma (ainda que parecido com o nosso), de a reserva do hotel ter tido problema ou de sermos roubados em plena madrugada, começou a se achegar um sentimento traiçoeiro de vulnerabilidade. Cadê aquela garota crescidinha que estava aqui?

Até que tudo se tornou desproporcionalmente grande para mim. Eu não merecia — e não era capaz de lidar. Eu me senti a menor pessoa do mundo em frente ao desconhecido. Não no sentido libertador e catártico, mas no sentido desesperador, quando tudo se torna ameaçador. Se você nunca sentiu o gostinho da ansiedade, compreendo se não entender completamente.

Se você me perguntar do que exatamente eu tinha medo, talvez eu não consiga responder. De nada em específico, mas de tudo ao mesmo tempo. Dessa vez eu não hiperventilei nos voos, na verdade eu dormi na maioria deles. Os sintomas da ansiedade não estavam explícitos assim. Mas a pele arrancada das minhas unhas mostrava que ela estava ali, tangível na ponta dos dedos. Quem diria que sair de férias causaria uma novela mexicana aqui dentro?

No primeiro dia de viagem eu, meu parceiro e a ansiedade andamos à pé, compramos comida, vimos arte, fomos à livraria e voltamos inteiros pra casa. No segundo dia, a chuva não nos impediu de sair para tomar café e fazer um tour no teatro. No terceiro, voamos para a Patagônia e vimos anoitecer às 9 da noite. No outro, subimos uma montanha e andamos na neve pela primeira vez. Estava acontecendo o que eu não esperava: eu estava vivendo.

Vendo os casais de mãos dadas, os idosos ativos e independentes, os cachorrinhos passeando com seus donos, os amigos sentados à beira-mar no pôr-do-sol das 20h, os bebês rechonchudos agasalhados com suas mães e vendo todo tipo de gente (as malandras, as simpáticas, as gentis e as indiferentes), me veio a percepção quase física de que todo lugar do mundo tem um pouco do pequeno mundo que eu conheço.

Escrevendo agora, começo até a achar que, assim como eu, minha vilã estava mesmo precisando sair de casa, porque não demorou para que aquele sentimento esmagador de vulnerabilidade se tornasse um libertador senso de capacidade. Eu posso existir neste mundo, com meu bom e meu ruim, com o medo e o desejo. Eu posso me adaptar fora do conhecido. Eu sou gente como toda gente do mundo. E todo canto é um pouco meu também.

Não coloco a mão no fogo por mim. É bem provável que a ansiedade continue transitando comigo — seja para a esquina de casa ou para o outro lado do mundo. Mas estou aprendendo a ir com ela, até que ela se acostume a viver sem mim. O mundo é vasto, mas me cabe. Eu pertenço a ele, porque pertenço a mim, e me levo comigo para onde for.

P.S.: Minhas unhas se recuperam, com sequelas, mas estĂŁo sendo bem cuidadas.

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